Autora: Marialice Dias (Mestre em Direito do Urbanismo e do Meio Ambiente, pela Universidade de Limoges/França, professora titular da disciplina de Direito Ambiental e Minerário da FARO - Faculdade de Rondônia, coordenadora dos cursos de pós-graduação de Direito Ambiental e Gestão Ambiental da FARO)
A partir da chegada dos colonizadores no Brasil, temos assistido continuamente ao desrespeito com que os povos indígenas têm sido tratados. A partir de então não só os índios, como também outras comunidades têm sofrido com a invasão dos seus espaços, por isso não é nenhuma surpresa o que está ocorrendo com a construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau.
O homem que professa ser civilizado não tem demonstrado muita preocupação com a continuidade desses povos. Leis são elaboradas, movimentos são formados, ONGs se manifestam, porém esbarram em interesses única e exclusivamente econômicos, sem atentar para a sustentabilidade das espécies, nestas incluída o elemento humano.
O Tratado entre os Povos Indígenas e as ONGs, elaborado na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992, traz no seu texto, referindo-se à questão territorial indígena, que “os povos indígenas foram postos sobre nossa mãe terra por seu criador. Pertencemos a terra, não podemos ser separados de nossas terras e territórios. Por este motivo os povos indígenas têm direito aos seus territórios, aos recursos e à biodiversidade que eles contêm”. Reportando-se Economia e meio ambiente, o Tratado afirma que “por séculos, os povos indígenas têm tido uma relação íntima com a natureza, transmitindo respeito, independência e equilíbrio. Por este motivo, estes povos têm desenvolvido modelos econômicos, sociais e culturais que respeitam a natureza sem destruí-la. Estes modelos prevêem manejo e apropriação coletivas dos recursos naturais baseados na participação comunitária e solidária”.
Sabiamente o Cacique Seatle, da tribo Duwamish, do Estado de Washington, escreveu uma carta para o Presidente Franklin Pierce, dos Estados Unidos, em 1855, depois de o governo ter dado a entender que pretendia comprar o território da tribo e numa parte do texto ele assim se expressou: “Sua ganância empobrecerá a terra e vai deixar atrás de si os desertos. A vista de suas cidades é um tormento para os olhos do homem vermelho. Mas talvez isso seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende”.
Não podemos negar o desenvolvimento econômico, até seria hipocrisia fazê-lo, já que utilizamos elementos dele no nosso dia-a-dia, mas este deve ocorrer com sustentabilidade, não de forma impensada, conduzindo ao desconforto das comunidades afetadas tirando-as do seu espaço, relocalizando-as em ambientes que para elas são desagradáveis em virtude das suas tradições, do seu apego ao solo convertido por eles em sagrado tanto pelo amor ao seu espaço original, quanto pelo que segundo eles foi consagrado por ser residência dos seus antepassados. Como exemplo dos transtornos temos os moradores de Mutum Paraná os quais estão preocupados com o deslocamento para a recém-construída Nova Mutum, haja vista que lá pagarão impostos, e aqueles que têm sua própria empresa queixam-se que, o local onde irão morar não vai caber toda a família, e ainda terão que pagar água, luz e IPTU, fora o prejuízo relativo aos bens que perderão, pois as propostas de indenização são baixíssimas. Remover essas pessoas da margem do rio para um ambiente totalmente construído, é o mesmo que enclausurá-las.
Os responsáveis pelos projetos da Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau teriam ouvido as comunidades indígenas e ribeirinhas de forma satisfatória? Tanto não o foram que algumas delas continuam a expressando o seu descontentamento com tal empreendimento num manifesto assinado pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), MST e Movimento dos Pequenos Agricultores-MPA e outros movimentos dos países atingidos. Um projeto que consolidaria a presença do capital monopolista em uma região estratégica e cujo efeito imediato seria a degradação do modo de vida das nações indígenas e das comunidades ribeirinhas e a desestruturação acelerada das economias locais, da agricultura familiar e dos já precários centros urbanos é assustador.
Algo que foi dito de forma louvável por integrantes do movimento Viva o Rio Madeira Vivo, que congrega mais de dez movimentos sociais e entidades ambientalistas, dentre os quais Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), nos leva a uma reflexão mais profunda acerca dos afetados diretamente: “O rio Madeira e suas margens deixarão de atender ribeirinhos, indígenas e a população de Porto Velho com água, peixes, sedimentos e vida para se tornar um rio-mercadoria.”
Um empreendimento que apresenta um elevadíssimo potencial de impacto, sob o pretexto de progresso, representa, nada mais, nada menos, que o atestado de óbito do Rio Madeira no Estado de Rondônia, que provocará significativas mudanças em seu leito, afetando toda forma de vida do seu entorno. Apenas para se ter uma idéia, mais de um milhão de brasileiros já foram expulsos de suas terras em razão da construção de hidrelétricas. Desse total, apenas 30% receberam algum tipo de compensação. Será que o progresso irracional vale tanto a pena?
As pseudo-negociações entre o poluidor e o Poder Executivo deve sim, nos levar a agir racionalmente e entender que o meio ambiente não é objeto de barganha.
Que cada um de nós reflita sabiamente ou iremos assistir ao cumprimento do provérbio indígena, sem tempo para lastimar: “Apenas quando o homem matar o último peixe, poluir o último rio e derrubar a última árvore, irá compreender que não poderá comer dinheiro.”
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